Otávio tinha a alma gasta.
Não por tragédia, nem por alguma iluminação súbita. Era desgaste. Um modo silencioso de perder o centro. As coisas iam passando e ficando — e ele, cada vez menos.
Tinha cinquenta e dois anos e não escrevia há meses. Ou escrevia, mas tudo morria na metade. Começava frases como quem abre uma porta e encontra uma parede. Às vezes recomeçava, às vezes deixava como estava. Vivia assim — pela metade e pela borda.
Naquela manhã, enquanto esquentava o café de ontem no micro-ondas e olhava pela janela o homem lavando o carro da frente, ela voltou. A frase. Aquela.
“O suicídio é o único problema filosófico realmente sério.” — Camus.
Otávio pensou: isso é uma mentira elegante.
Não sabia ao certo se queria refutar ou apenas colocar outro som em cima dela. Queria escrever contra, mas sem brigar. Como quem diz: “Não, Camus, não é isso. É menos. Ou talvez mais.”
Sentou-se com uma náusea morna, arrastada. Pegou o caderno com capa de couro que já carregava como quem carrega um corpo falecido. Abriu em uma página nova e escreveu:
“O suicídio é o menor dos problemas. Talvez nem seja um problema. Talvez seja só uma resposta fora de hora. O problema, o que se arrasta, é acordar todos os dias com o mesmo corpo. A mesma vida. E continuar nela.”
Parou. Leu. Era uma frase? Era. Era verdade? Talvez. Mas também era encenação. Ele se conhecia. Sabia como escrevia bonito para fugir do que realmente queria dizer.
Tentou de novo.
“Refutar Camus não é discordar. É afinar o tom. O suicídio é uma pergunta extrema, mas rara. O cotidiano, sim, é insistência. E isso sim é filosófico: a arte de não sair pela porta.”
Ficou olhando a frase como quem olha um parente distante no enterro de outro — reconhecendo traços, sem saber se abraça. Achou que havia algo de verdadeiro ali, mas sem coragem de ir muito mais fundo. E também — para quê?
Levantou-se, foi até a cozinha de novo, esqueceu o café no micro-ondas, voltou com a xícara morna. Bebeu um gole. Amargo, velho. Mas ainda servia.
O problema sério, pensava ele, era esse: o que ainda serve. A roupa que ainda cabe. O emprego que ainda paga. A casa que ainda abriga. A vida que ainda continua. Mesmo sem sentido — continua.
O verdadeiro abismo não está no fim. Está na manutenção.
Voltou ao caderno. Riscar não fazia mais sentido. Acrescentou abaixo:
“Camus nomeia o abismo. Mas o abismo já não precisa de nome. Ele vive conosco. Anda entre os talheres, repousa na escrivaninha, cochila na escova de dentes. O nome do abismo é terça-feira.”
Fechou o caderno com um estalo seco. A respiração parecia funda demais. Respirar doía — não nos pulmões, mas em algum lugar sem nome, entre o peito e o dia.
Pensou nos amigos mortos. Uns por acidente, outros por escolha. Nenhuma dessas mortes o assustava. O que o assustava era o intervalo entre elas. O tempo que se arrasta. Os dias que insistem.
Olhou a janela. O homem do carro agora secava o capô com um pano laranja. Pensou se ele também já tivera vontade de desaparecer. Não morrer — só deixar de ter que continuar.
Pensou em Camus, e depois pensou em nada.
Depois, com um gesto sem pressa, pegou o caderno novamente.
Escreveu mais uma linha — não por esperança, nem por fé. Mas por hábito.
E porque ainda não era noite.
E porque, no fundo, mesmo sem saber por quê, era preciso imaginar Sísifo feliz.
Respirar doía em algum lugar entre o peito e o dia...
Fico feliz de ler algo tão bem escrito.
As vezes fico admirado de como consegues ser tão inteligente kkk
Mas não fico tão feliz assim, quer dizer, não sei...
Não vou comentar textos futuros, acho que estraga a obra ficar comentando e etc.
Mas comentei esse na esperança de que continue a escrever e publicar cada vez mais.
Sucesso e obrigado pela tua arte.